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VILA MIRANTE - PRAIA DA ROCHA -1938 

ARQ. ANTÓNIO VARELA (1903-1962)

CONTEXTO HISTÓRICO-PATRIMONIAL

O caso desta encomenda de António Varela surge mais directamente relacionado com o seu círculo de amigos em Lisboa: pela mesma altura em que concebeu o projecto da Fábrica de Matosinhos da Algarve Exportador Limitada, houve a oportunidade de desenhar uma casa de férias para o seu então cliente e antigo protector, o industrial e coleccionador Agostinho Fernandes. 

Aqui podem estabelecer-se duas hipóteses para tentar compreender o contexto: tendo sido este empresário o patrono de Almada Negreiros e ex-editor da extinta Contemporânea, afigura-se como plausível a contratação de Varela por indicação do pintor, amigo de Agostinho Fernandes desde os tempos do Orpheu. Mas, por outro lado, tudo leva a crer que a relação entre o empresário/coleccionador e o arquitecto remonta a aproximadamente 1920-1925, pois não devemos esquecer que foi este quem financiou uma parte dos seus estudos na Escola de Belas Artes do Porto. 

(…)

Num contexto de relação, o projecto da casa de Agostinho Fernandes parece integrar simultaneamente a «via mediterrânica» do novecentismo e do purismo dos anos 1920 relembrando a temática sulista de alguns pintores da mesma geração, assim como alguma pesquisa em torno das «casas do sul», que também é possível presenciar nos percursos de Jorge Segurado e Carlos Ramos, não sendo aqui de descurar a influência destes principais «mestres» com quem Varela colaborou. 

Por outro lado, esta obra também é testemunha de uma certa capacidade de «flexibilidade conceptual» do seu autor. Convém esclarecer que a edificação, ao contrário do que possa parecer actualmente, não se processou de uma vez só, tendo, em realidade, integrado dois momentos construtivos que parecem responder a dois movimentos projectuais que, apesar de no conjunto se sobreporem, permitem duas leituras distintas. 

Inicialmente, a casa foi concebida como uma pequena habitação térrea, composta por uma sala central com lareira, donde partem dois volumes cilíndricos (as «quilhas»), em clara analogia com o «torreão» da fábrica da AEL, avançando-se para o exterior, tal como no projecto de Matosinhos, em nítido diálogo com o horizonte marítimo. Aqui o processo é nitidamente simétrico, e, poder-se ia afirmar – se tivermos em conta um certo antropomorfismo latente –, duplicando-se de modo «bicéfalo», à semelhança das entradas do Liceu Dona Felipa de Lencastre e da Casa da Moeda, entre outros projectos marcados pela procura de um “racionalismo clássico” desenvolvido pela dupla Segurado/Varela neste período. Com correspondência aos pontos cardeais, estas quilhas definem, interiormente, um quarto, a sul, e uma sala de refeições, a poente.

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Mas as semelhanças dos elementos compositivos não se ficam por aqui: também a «pala» de cobertura do terraço da sala retoma o mesmo gesto da laje em consola do «torreão» da Fábrica de Matosinhos, que aqui surge reinterpretada pelo exterior. Paralelamente, reproduz ainda, em altura, a forma concêntrica do terraço central, que parece «cintar» a casa num gesto protector, simultaneamente gerador e centrípeto, e envolto pelos corpos laterais. 
De facto, o sentimento «protector» deste espaço contrasta e reposiciona o conjunto face à omnipresença do oceano, parecendo testemunhar da necessidade de Varela em reequilibrar «as forças em presença», num gesto de intimidade em torno da ideia do abrigo, e que parece ter a sua origem no ponto central da lareira da sala. 
É necessário fazer o percurso de «ascensão» à casa, subindo a monumental escadaria de tijoleira que liga a propriedade à avenida marginal, para compreender este momento poético de Varela, claramente de «apoteose», e que aqui se revela como «momento perfeito», ao encontro do significado das letras afixadas na «quilha» em frente ao mar: Mirante, de seu nome, o que do ponto de vista do imaginário parece querer dizer «quase tudo». Este mito do «percurso em ascensão», também presente na Fábrica de Matosinhos, parece ser um tema recorrente em algumas obras de Varela e viria a ser retomado na Casa da Rua de Alcolena, no Restelo, já sob outro contexto histórico. 
Em oposição, o tratamento dado ao lado oposto da casa é bastante diferente, como que assumindo a sua negação, o que em parte se justifica por um seu encosto ao limite do terreno triangular, assumindo claramente o carácter de «traseiras»: compõe-se de uma fachada plana destinada à área de serviços que «corre» em todo o comprimento do muro a nordeste delimitando o lote, apenas interrompendo-se num volume arredondado que corresponde a uma instalação sanitária de exteriores situada no gaveto norte. 
Dir-se-ia que esta outra «quilha» retoma o estilo boat a uma escala humana, e prolonga-se numa «pala» que se estende em alpendre junto à entrada principal situada a noroeste. Esta articulação corresponde à composição da casa ainda no seu primeiro momento, enquanto habitação térrea, e também se relaciona com a leitura posterior do conjunto, que integra a ampliação do segundo piso.
Tal como na Fábrica de Matosinhos, é também na leitura de continuidade deste segundo movimento construtivo que se confirma o virtuosismo de Varela, enquanto projectista, na sua flexibilidade interpretativa e na sua capacidade para criar novas e sucessivas sínteses consoante as adaptações ao programa: se, por um lado, o valor plástico da composição térrea parece reenviar para uma leitura simultaneamente modernista e mediterrânica – e, convém acrescentar, «radical» para a época e o contexto cultural e urbano em que se enquadrou  –, por outro, a sua ampliação transfigura essa leitura mais purista e estabelece outras relações possíveis entre alguma influência vienense, uma acentuação classicizante e alguns apontamentos Art Déco.

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Convém salientar que sem o testemunho de fotografias mais antigas não seria possível descobrir o carácter simultaneamente modernista e vernacular da primeira fase, por oposição a uma estética mais clássica de que resulta a segunda, onde se destaca o remate de uma cornija na cobertura e, no geral, um reforço da verticalidade, da tripartição e da simetria axial. Mas, apesar da «densidade» que esta ampliação parece ter trazido ao conjunto, é possível verificar uma nova síntese de que resulta uma outra leitura surpre- endentemente harmónica e homogénea: aqui os dois elementos cilíndricos ganham em verticalidade dando origem a dois terraços em açoteia e a sala é replicada por uma outra de igual dimensão no piso superior. Para mais, esses dois elementos cilíndricos da primei- ra fase, anteriormente ligados por um continuum horizontal da fachada, agora destaca- dos com a criação das açoteias, paradoxalmente, parecem enfatizar o contraste entre a centralidade cúbica e a dinâmica das «quilhas». 
De um ponto de vista simbólico, algumas aparentes dissonâncias parecem esbater-se, tanto no que diz respeito à sua orientação, como à composição em geral: no que respeita à sua orientação, o primeiro «erro» que parece evidenciar-se parece ser a negação ao eixo da avenida e a frente costeira de todo o promontório da Praia da Rocha: este aspecto evidencia-se ainda mais pelo acesso ao portão da entrada, esquinado em relação à rua, notando-se que a casa não está disposta de frente para a avenida e para o mar, mas sofre uma rotação de quarenta e cinco graus para poente. 
Se, hoje em dia, a «resposta» se oculta por detrás de um edifício vizinho que lhe vela metade da vista de mar, será preciso fazer um esforço imaginativo, juntamente com a ajuda de alguma documentação fotográfica antiga para se conseguir estabelecer a relação. Se, poeticamente, a casa se apelidou Mirante, parece ter sido por razões explicitamente ligadas ao imaginário sulista algarvio e, por extensão, a uma dimensão estética mediterrânica, à qual a grande admiração de Agostinho Fernandes pela figura e pela obra de Manuel Teixeira Gomes não terá sido certamente alheia, parecendo aqui convergir para a compreensão das forças do imaginário em presença. 
Mas, as razões também poderão ser de outra ordem e, aqui, manifestar-se o mesmo gesto ordenador do espaço, comum à casa do Restelo. A orientação da casa «contraria» o mais simples raciocínio lógico de integração no terreno, em declive, simplesmente porque esta não «responde» topologicamente, sendo antes a sua razão de natureza simbólica: dispõe-se exactamente a sudoeste e aponta – ou antes: «mira» –, através de um eixo visual que atravessa a Ponta da Piedade em Lagos e continua em direcção ao Promontório Sacro.

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Se não fosse o contexto e a influência neopitagórica de raiz hermética que Varela parece ter colhido junto de alguns «mestres», poderíamos afirmar que tal facto é fruto de outra ordem de razões. Mas como em quase tudo no que respeita as obras mais emblemáticas deste arquitecto, «a coisa» parece não existir por acaso. E se houve alguma influência da mítica almadiana, talvez nunca se venha a saber. O facto é que a «direcção única» acalentada pelo pintor e apoiada por Fernando Pessoa e certa parte da geração dos «filhos do Orpheu» parece aqui sobrepor-se à metáfora do «Sudoeste»  que, pela mesma altura, o «mestre» veiculava através da sua publicação homónima. A tudo isto Varela não terá sido certamente alheio ao projectar a casa de seu patrono, também ele, «silenciosamente» – como era seu costume –, envolvido com a intelectualidade artística modernista, sendo que a casa parece «espelhar» também, a imagem do seu ideal sulista, o que se pode comprovar em alguns quadros de sua antiga colecção.
A análise geométrica parece revelar os mecanismos ordenadores do espaço e permite verificar o trabalho compositivo de Varela com maior clareza: aqui também parece confirmar-se a utilização do sistema da quadratura combinada, onde a presença do círculo regedor parece regrar a materialização de alguns elementos construtivos numa sequência de seis circunferências polarizadas em torno do centro da composição, e que se desdobram em vários movimentos de potencialização para o exterior. 
Nota-se que o desenho da lareira é formado por arcos perfeitos que se desdobram na horizontal, materializando a sua base, e na vertical, formando um «arco de fecho». Rege-se em torno do eixo de rotação composto pela união da parede/vertical com o pavimento/ horizontal.
O desenho da lareira é «demasiado formal» para não ser levado em consideração: a sua importância geométrico-simbólica parece ser essencial, e tal como no caso da bandeira do pórtico da Fábrica de Matosinhos, aqui parece ser esta a materialização da «chave», na parede da sala, do centro geométrico gerador da quadratura, sendo as suas dimensões iguais às do círculo primordial.

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Pode ainda colocar-se a hipótese de ser este elemento o logótipo fundador da casa, associando o simbolismo do fogo que rege a verticalidade dominante e estabelece uma relação visual com o mar (a água) e a horizontalidade. Desta ideia podem surgir algumas analogias geométrico-simbólicas, sendo que este Axis‐Mundi parece fundamentar todo o esquema de desdobramentos de círculos concêntricos. Estes círculos, por sua vez, desdobram-se em potencializações de quadraturas e definem as proporções gerais do edifício, em comprimento, largura e altura. Apesar de serem elementos que, por definição, fazem parte dos mecanismos de pré-composição – onde alguma compartimentação de certos espaços interiores parece, por vezes, querer contrariar, por razões funcionais ou outras, a lógica da concordância –, subsiste, apesar de tudo, uma certa ideia geral de «crescendo» em torno de um «vórtice», um gesto «quase hipnótico» que se materializa sob forma de alguns elementos notáveis e que se podem facilmente identificar. 

Sendo que estabelecimento destas relações permite compreender melhor alguns gestos formais do autor – indo para além do julgamento da arbitrariedade, na justificação geométrica e na intenção simbólica –, uma análise à composição das fachadas também permite uma leitura da máxima hermética «o que está em baixo é igual ao que está em cima», sendo que a correspondência com o traçado da quadratura parece reger a «moldura» que se destaca da proporção dos quadrados em diversos pontos notáveis da composição dos alçados. 

Reminiscência da platibanda que constituía a cobertura anterior, aqui pode comparar-se directamente a altura do friso que corre, ou «cinta», toda a casa no seu perímetro: tal como nos alçados da Fábrica de Matosinhos, parece ser este o eixo horizontal que marca a separação dos pisos ao nível da laje e que regra a relação entre o «baixo» e o «alto». 

A harmonia resultante do traçado em elevação também parece denunciar a intenção de um projecto previamente concebido como um todo, sendo coincidente a ampliação em altura com o corpo térreo inicial, o que permite concluir que Varela terá operado sempre sem roturas ao nível do prolongamento da métrica, em eurritmia. 

Em síntese, parece evidenciar-se que este projecto de António Varela, feito para o mesmo cliente, mas sob outro programa, que não o industrial, é testemunho da sua interpretação em torno da estética sulista típica de algum diálogo da modernidade de primeira geração, onde as influências do mediterranismo, a par de outras reminiscências, parecem entrecruzar-se com referências platónico-pitagóricas que regem a composição, aludindo a um enredo mítico-simbólico que se confirma através de uma hermenêutica espacial, codificada na sua organização e perceptível em determinados elementos da edificação. 

Tais elementos, pelo modo como se organizam no conjunto, revelam lógicas geométricas e permitem estabelecer analogias com outras obras do autor onde se evidencia um diálogo recorrente em torno do círculo e do quadrado. Este registo simbólico, aqui algo velado, viria a evidenciar-se de um modo mais explícito, alguns anos mais tarde, com a colaboração de Almada Negreiros no projecto da casa do Restelo.

(Extracto de "A casa de Agostinho Fernandes - uma aproximação mediterrânica à modernidade portuguesa", in "António Varela - O Legado do Invisível", Cap. 5, pp. 188-193.)

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REABILITAÇÃO
2007 - 2011

Hugo Nazareth Fernandes / Susana Teixeira

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